sexta-feira, 1 de junho de 2012

Mutirão dos escalpelados

Mutirão dos escalpelados Chamamento feito e aceitação incontinente, não fosse pelo entusiasmo que tenho por este tipo de atividade médica que sempre invejei quando ouvia as notícias sobre os médicos sem fronteira, que voluntariamente se dispunham a abandonar todas suas atividades e ir em grupo atender as necessidades de alguma gente onde ela estivesse. Sob este sentimento já estivemos na Palestina para operar crianças com lesões produzidas por explosão de minas das guerras na região, atendemos solicitações para operar lábio leporino e palato aberto no Ceará, Mato Grosso, Goiania, além de realizar, em Florianópolis, movimentos com o mesmo espírito, mirando câncer de pele, reconstrução de mamas. Na região amazônica, não tem estradas, toda mobilização é feita utilizando barcos. Recentemente, estivemos em Macapá para operar pessoas que tiveram seus cabelos e couro cabeludo arrancados pelo eixo dos barcos onde viajavam. Nestes barcos vão às compras, saem para vender seus produtos de extração (borracha, açaí etc), peles, peixes e fazer sua economia. As crianças vão à escola diariamente em viagens de ida e volta. Os barcos onde mais comumente ocorrem os acidentes são chamados de catraia. Têm em torno de doze metros de comprimento por 1,5 metro, são rasos, com pouca borda e, por consequência, o forro é bastante elevado, com pouca profundidade. Ao navegar, os passageiros se mobilizam com quedas, ou auxiliam na retirada de água. Ao abaixarem seus cabelos, enrolam no eixo que, com movimento firme, arranca o couro cabeludo. Pensamos: por que deixam cabelos soltos? Não há como, todo o tempo, cuidar destes detalhes. O povo, por sua vez, tem predominância de cabelos lisos e os usam longos como critério de beleza, o que facilita o infortúnio. Tudo, barco, seu uso, descuidos fazem parte da cultura local, que vem sofrendo interferência dos órgãos competentes com educação continuada da população nas escolas e campanhas. O número de casos vem diminuindo, o Amapá relata com orgulho que, neste ano, não aconteceu nenhum acidente desta natureza. Acontece que o problema é endêmico de toda Amazônia, onde está reduzindo o número, mas demorará a desaparecer. Entretanto, as pessoas que já sofreram o escalpo têm os defeitos constituídos necessitando de tratamento. Nossa experiência anterior era com acidentes ocorridos aqui mesmo em Santa Catarina, onde o agente causador eram os engenhos de farinha movidos por bois ou roda d´água onde no seu interior existiam polias e correias que giravam todo o tempo em altura suficiente para que pessoas de estatura não muito avantajadas caminhassem livremente. Na hora da atividade, esta movimentação gerava uma circulação do ar com sucção ascendente e as mulheres tinham seus cabelos longos e soltos aspirados por esta corrente de ar com o mesmo destino e consequente arrancamento. O tratamento se resumia ao transplante livre de pele, obtido em outros locais do corpo que vestia satisfatoriamente toda a área cobrindo os ossos do crânio, mas não lhes podia devolver os cabelos. Na época, apenas a peruca melhorava o aspecto e algumas apenas usavam um lenço na cabeça. Esta ainda é a conduta no local onde fomos atender os atingidos. Hoje contamos com uma prótese de silicone que consiste numa bolsa que é inflada lentamente e distende o couro cabeludo, permitindo dobrar sua extensão e cobrir boa ou toda porção perdida, melhorando enormemente o aspecto final. Outro segmento muito atingido é a sobrancelha, que é incluída na área perdida junto com as orelhas, parcial ou totalmente. A ação é limitada na medida em que a lesão é mais extensa e impede um tratamento efetivo, entretanto, se as sobrancelhas estão presentes e as pálpebras não tracionadas para a testa, a peruca permite a cobertura mais natural. Tivemos a felicidade de poder, durante três dias, participar das cirurgias realizadas em 52 pacientes que necessitavam de cuidados variados, todos ligados ao escalpe. Realizados estes procedimentos, nosso retorno é necessário para organizar o tratamento com enchimento dos expansores até princípios de setembro, quando serão finalizadas as expansões, permitindo a migração do couro cabeludo. Apesar de longa viagem, as funções compensadoras e as atrações locais como o “Marco Zero” sobre a linha por onde passa o Equador, conhecer os costumes dos ribeirinhos, sentir o espírito brasileiro quando o estádio é construído, de forma tal que cada campo fica num hemisfério e tem o nome de “Zerão”. Sem a participação do governo do Estado do Amapá, esta movimentação não poderia acontecer. Jornal – Diario do Sul – seção colunistas – dia da semana quinta feira cidade: Tubarão, S.C.

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